quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Minha primeira vez

A primeira vez que eu transei não foi muito memorável, eu não sabia o que estava fazendo e foi bem rápida. Não é dessa primeira vez que escrevo.


Lembro bem da indescritível sensação da primeira vez que beijei minha atual esposa, da primeira vez que peguei minha filha no colo, da primeira vez que comi algumas comidas maravilhosas, da primeira vez que descobri o universo FIRE, do primeiro grande show que fui (Oasis + Guns ‘n Roses – Rock in Rio 2000), da primeira vez que subi num palco (AC já foi aspirante a rockstar, essa você não sabia), dentre outras agradáveis primeiras vezes difíceis de exprimir em palavras. Também não é dessas primeiras vezes que escrevo neste momento.


Meus dois avôs morreram em menos de 2 meses, primeiro vovó, depois vovô. Vovó já vinha com uma doença crônica há alguns anos, foi se debilitando e o dia chegou. Não era exatamente esperado, mas era “esperado”. Foi duro. Vovô, então viúvo, teve algumas primeiras vezes e dessas que quero falar.


Após 60 anos de convivência, vovô fez a primeira refeição sozinho. A primeira vez que entrou em casa e não viu a vovó, apesar de suas roupas no varal e no armário. A primeira vez que abriu a dispensa e viu as comidas dela. A primeira vez que teve de ir ao mercado e se virar, já que ele “não sabia escolher frutas e legumes direito” (palavras de vovó pra mim, antes de partir). A primeira vez que deitou na cama e ela pareceu grande demais. O primeiro aniversário sem vovó a ser a primeira a lhe dar parabéns e a última a dar “boa noite”. Foram dias difíceis, até que subitamente, veio a primeira vez que sentiu dores e teve de ir ao hospital sozinho. Lá ficou por um dia e teve uma parada cardio-respiratória. Não que ele fosse extremamente saudável, mas não era a hora dele. Não era.


Agora entro a primeira vez na casa deles, minha primeira vez sem vê-los naquele ambiente familiar, que ainda tem o cheiro deles e todas as coisas deles. Ainda tem comida na geladeira e roupas no varal. Parece também ser a primeira vez que meu pai se toca que virou órfão. Se o que sinto já não é legal, pra ele deve ser uma sensação nada bacana. Obs: tenho sorte de ter dois pais, um de nascença e um de criação.


Não sei muito o porquê, mas lembrei de um amigo que matou um cara aos 19 anos, atropelando ele numa via expressa em plena madrugada. Meu amigo não estava alcoolizado e o pedestre atravessava fora da faixa logo após uma curva, suspeitou-se até de suicídio. De toda forma, consigo imaginar todas as primeiras vezes que esse amigo teve. A primeira vez que foi dormir após matar alguém. A primeira vez que dirigiu após atropelar alguém. A primeira vez que voltou a sorrir após ceifar a vida de outra pessoa. Não deve ser fácil.


Essas primeiras vezes me fizeram mais uma vez perceber quão irrelevante é torcer pra um código na tela do seu computador ficar azul e subir, quão ridículo é defender políticos que a gente mal conhece e acha que sabe tudo da pessoa, quão inócuas são discussões sobre atualidades que em poucos dias deixam de ser atuais.


A vida segue e vamos agradecer pelo legado imaterial deixado pelos que se foram e pelo carinho daqueles que aqui ainda estão.


Que suas próximas primeiras vezes sejam do melhor tipo possível.


Beijos (pela primeira vez)

domingo, 12 de setembro de 2021

Criptos não são moedas



Veja se parece absurda a história abaixo:


Eu e uns amigos criamos um produto virtual chamado ‘glerk’. Fizemos uma página para vender glerks, um revolucionário produto que irá mudar a humanidade e a forma com que encaramos o dinheiro. Com glerk você não dependerá de governos, nem de sua mãe para ser feliz e acumular riqueza. O preço do glerk é dinâmico: quanto mais gente comprar glerks, mais caro ele vai ficando; quanto mais gente quiser vender os glerks que tem, o preço dele vai caindo. Nossa página de vendas é totalmente segura devido a uma nova tecnologia que só os sábios sabem explicar.

Não é possível comprar nada com glerks, somente trocar sua moeda local (real, dólar, etc) por glerks. Alguns poucos usuários de glerks também aceitam glerks como pagamento por serviços, infelizmente quase nenhum no Brasil POR ENQUANTO (apesar de já existir glerk há 13 anos).

(história inventada por mim)


Leia agora o conceito de moeda (Wikipedia):


Moeda é o meio pelo qual são efetuadas as transações monetárias. É todo ativo que constitua forma imediata de solver débitos, com aceitabilidade geral e disponibilidade imediata, e que confere ao seu titular um direito de saque sobre o produto social.


Glerk, bitcoin, ethereum ou qualquer cripto não é moeda. Você não consegue pegar sua cripto e comprar pão na padaria (por favor, sem mimimi em dizer que seu amigo que mora na California consegue comprar um latte machiatto na padoca high tech da rua dele) ou qualquer produto em praticamente qualquer país – antes você precisa converter sua cripto em uma verdadeira moeda para adquirir um bem ou solver seu débito.


Em resumo, criptos são PRODUTOS, e não moedas. Produtos fictícios, vale ressaltar.

Definição de ativo:

Pode ser classificado como ativo tudo o que pode ser convertido em dinheiro de alguma forma. Por exemplo, o dinheiro em banco é um ativo, o estoque da empresa pode ser vendido e virar dinheiro, então é um ativo, o carro da empresa pode ser vendido e virar dinheiro, então é um ativo.


Ok, produtos e dinheiro são ativos, então cripto moedas também são, porém estão longe de poder serem chamadas de moedas.


“Ah, mas eu posso converter reais em bitcoin no Brasil, depois converter bitcoins em dólares lá nos EUA”. Pode mesmo, da mesma forma que você pode ir ao Paraguai, converter dólares ou guaranis em um celular, cruzar a fronteira e vender o celular no Brasil, convertendo em reais. Pode comprar um produto no AliExpress e revender no Brasil, convertendo ele em reais. A única diferença é a volatilidade: enquanto o “produto cripto” varia muito diariamente, seu produto físico varia pela inflação (e eventual câmbio, se for importado).


Por que eu investiria em um produto fictício?


Dependo que alguém queira esse produto fictício para vendê-lo e convertê-lo em MOEDA de verdade.


“AC, você não entende: há uma escassez de critpo moeda” – escassez essa inventada e só daquela cripto. Digamos que sejam mineradas todas as bitcoins possíveis. O que impede de a “coletividade” deliberar sobre aumentar o número de bitcoins em circulação? Ou, mais fácil ainda, por que as pessoas iriam pagar cada vez mais caro numa então escassa bitcoin se é possível comprar centenas de produtos semelhantes?


Veja bem, pouco me importa falar aqui sobre segurança, blockchain, impenhorabilidade, “fora do alcance dos governos”, “criada pelo povo e para o povo” ou qualquer retórica a respeito de cripto moedas. Estou escrevendo sobre o que são no mundo real.


“Eeeeeeeee dor de corno! Nunca comprou, tá vendo uma galera multiplicar patrimônio com as criptos e tá aí difamando”. Nada disso, caro leitor. Também nunca comprei ações da Tesla, Apple, Banco Inter ou Magalu, nem por isso vou sair detonando esses ativos.


Não quero afirmar que criptos são pirâmides, só reflita comigo: se ninguém mais quiser comprar uma ação de uma empresa, um fundo imobiliário proprietário de um prédio, um título do Tesouro Nacional ou uma debênture de concessionária de energia, a empresa vai deixar de existir, o prédio vai sumir, o Governo vai acabar ou a concessionária vai falir? Negativo a todas as respostas.


A empresa seguirá existindo por seu valor contábil, o fundo continuará sendo proprietário do prédio e acruando seu aluguel, o Governo seguirá existindo e a concessionária precisará buscar outro meio de empréstimo. Você, o titular dos ativos, continuará sendo sócio de uma empresa que poderá distribuir lucros (sujeito à recompra de sua ação pela empresa), proprietário de uma fração de um prédio, titular dos juros que o Governo e a concessionária prometeram pagar (passíveis de ações judiciais e inúmeras medidas protetivas em caso de calote, mesmo que demoradas).


Agora, e se cada vez menos pessoas quiserem comprar bitcoin, Ethereum, etc? Se 70% dos investidores concluírem que nada se compra com cripto, a não ser dinheiro de verdade, e quiserem fazer a conversão? Você, que não vendeu, terá um produto fictício na tela do seu computador ou no seu pen drive e dependerá que novas pessoas ACREDITEM que aquele produto é uma boa opção de investimento.


Adoraria ler seus contra-argumentos nos comentários demonstrando que criptos não dependem exclusivamente de novos crentes para que seus preços subam e elas sigam existindo.


O fato é que o mundo é mais tecnológico a cada segundo e, enquanto criptos tiverem suas imagens vendidas – por proprietários - como o novo ouro; enquanto crentes no argumento comprarem essa imagem e as criptos; os produtos inventados perpetuarão. Talvez você morra sem que o número de descrentes supere o de crentes; talvez você resolva converter seus ativos inventados em qualquer moeda de verdade ainda com lucro (aliás, torço por isso, não quero que nenhum leitor daqui tenha prejuízo).


Há pouco tempo ruíram algumas pirâmides no RJ, dentre elas duas “empresas” que vendiam juros de 10% ao mês ao comprador/investidor, a primeira dizendo que aplicava o dinheiro em bitcoin; a segunda dizendo que sabia a fórmula mágica para ganhos em apostas esportivas. Se realmente davam tais destinos ao dinheiro, não sei, mas sem dúvida a segunda era bem mais honesta deixando claro que apostava a grana.


Abraço


Obs: apostei 5k há alguns meses num fundo de cripto (e vou deixar lá), assim como já joguei umas pratas fora em sites de poker, blackjack e jogos de futebol.