domingo, 18 de julho de 2021

Guaraná zero


 

Ontem tive o prazer de encontrar um ouvinte do Boteco Fire, que irei chamar de João. Tendo atingido sua independência financeira, João vendeu a casa que morava no Rio de Janeiro e se mudou para Santa Catarina há poucas semanas, ainda com seu emprego (agora 100% remoto) e já com aviso de demissão programado para próximo novembro.


Marcamos uma praia em família: João, esposa e filho + família AC. Tivemos um excelente dia juntos e almoçamos no local, com um detalhe que me fez refletir ao fim do dia.


Por volta das 11h sentamos a uma mesa na areia e João pediu um guaraná zero. Às 11:30h o garçon voltou para servir outro item e João questionou sobre seu pedido, sob resposta de “ih, é mesmo”. Ao meio-dia (sim, uma hora depois) apareceu outro garçon com uma *coca* zero na mão, dizendo que não tinha guaraná. Resignado, João pediu um suco, o qual chegou em torno de 12:30h.


A curiosidade de todo o episódio foi que, apesar de ser a primeira vez, em algumas semanas, que João estava saindo e relaxando, após uma mudança de estado e tomadas de decisões importantes em sua vida pessoal e profissional, ele não reclamou em momento algum. Na 1h30min entre o pedido e a chegada de uma bebida – diferente da desejada – João não foi rude com os garçons, não comentou sobre a demora e falha de informação no serviço, não mudou em absolutamente nada sua postura, continuando a agradável conversa que tínhamos todos enquanto víamos nossos filhos brincarem.


Conheço muitas pessoas que, por muito menos, teriam estragado o momento se aborrecendo em silêncio ou cobrado efusivamente algum funcionário do restaurante (“chama o gerente!” ou “não vou pagar os 10%”). Eu mesmo, e, algum momento de minhas outras vidas, teria me exaltado; talvez o próprio João do passado teria tido outra conduta diante da mesma situação.


O fato é que João parecia indiferente à falta de seu guaraná zero e nutria sua sede com o agradável momento que estava vivendo. Com todas as possibilidades de encarar o copo meio cheio ou meio vazio; ter enchido o copo de paciência até transbordar; etc (escolha sua metáfora preferida), João notadamente agora tem um copo maior e o preenche com o que vem de dentro, não de fora. Flexibilidade, sem dúvidas, é uma das grandes chaves para uma vida leve.


Que você molde seu copo e o preencha nem sempre só com o que desejar, como também com o que a vida lhe proporcionar. No dia de ontem, João encheu com um momento – eu enchi o meu com cerveja mesmo.


Abraço

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Minhas quatro vidas

 Antes de mais nada, os encontros FIRE seguem a todo vapor nessa vida nômade. Nas últimas semanas tive o prazer de almoçar com o Soul e sua família (www.mundosoul.com.br) e tomar um chopp com Ivan Tonon (https://www.youtube.com/channel/UCwY0gQ1Dl1Y1qYsldkLoc_Q). Estou em Santa Catarina no momento e em breve estarei no RS; quem quiser bater um papo, deixe um comentário ou mande e-mail.

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Ouvindo o excelente podcast Rational Reminder, do excelente analista financeiro canadense Ben Felix, conheci Don Ezra, atuário com grandes contribuições ao setor enquanto ativo e, agora aposentado, contribuindo com a sociedade ao gerar reflexões sobre como lidar com a aposentadoria, tanto financeira quanto psicologicamente, com uma abordagem que, numa primeira análise, me pareceu muito interessante. Seu livro mais recente se chama “Life Two” (Vida Dois, em tradução livre) e um “livro auxiliar” ao mesmo é disponibilizado gratuitamente neste link.


Ainda estou caminhando na leitura acima, porém já me fez refletir sobre a quantidade de “vidas” que temos ao longo de nossa existência. O autor divide a existência dele em duas vidas: enquanto trabalhador e enquanto aposentado. Eu gostaria de ir muito mais além.


Na minha (curta) existência de 35 anos sinto que vivo a minha quarta vida. Chamo por “vida” o que entendia como tal a cada era.


A primeira vida foi a infância, diria que dos 0 aos 13 anos. Aquela transformação no corpo, desenvolvimento e habilidades básicas, a transição de sair só do núcleo familiar para agregar amigos à vida, entender que a escola era para ensinar utilidades para a vida. Vive-se de forma pura, sem a consciência do que a vida pode se tornar e as coisas simples, no geral, são o bastante para produzir grande felicidade.


A segunda vida foi dos 14 aos 25 anos, no meu caso. A vida era dividida em duas: estudar e se divertir. A meta dos estudos era conseguir uma boa qualificação estudantil para formar um bom pré-currículo profissional: tirar notas boas, entrar numa boa faculdade, fazer cursos de extensão e pós-graduação – tudo ainda dentro daquele formato obrigatório do jovem millenial. No lado pessoal, as metas eram namorar o máximo, se divertir, fabricar boas histórias e viajar na medida que o escasso dinheiro permitia.


Conheço muitas pessoas que ficam estagnadas no que foi a minha segunda vida. Sujeitos de 30 a 40 anos (ou mais) que são eternos estudantes, emendam cursos e mais cursos, jamais construindo uma carreira ou imagem profissional sólidas; outros, de mesma idade, cuja meta é saber “a boa do fds” e conhecer toda semana alguém diferente; muitos em ambas as situações. E assim vão vivendo, vários sob a aba dos pais/parentes, sem construírem relacionamentos amorosos sólidos, nem patrimônio material ou imaterial (contribuição à sociedade ou algo parecido).


Minha terceira vida foi dos 26 aos 33 anos, a mais curta de todas até agora. Já tendo atingido uma relativa estabilidade profissional, a meta neste âmbito era crescer orgânica e continuamente, buscando aprendizados autodidatas principalmente para fins profissionais práticos e focando muito mais em construir uma imagem do que um currículo – afinal, acho que menos de 1% dos clientes que já tive questionaram qual universidade cursei ou se tinha algum diploma de curso específico, eles queriam resultados e bom atendimento, acima de tudo. Na esfera pessoal, começava a enxergar que o mundo não é feito de números e excessos, e sim de qualidade e intensidade nos relacionamentos; o número de amigos e mulheres foi reduzindo, ficando cada vez mais quem realmente importa, até que amigos ficaram poucos e mulher somente uma e permanente (“mulheres” no plural me refiro a frequência de trocas, não necessariamente em simultaneidade, que fique claro).


Neste ponto eu presumo que grande parte das pessoas fique estagnada até a próxima vida (aposentadoria e/ou terceira idade). A vida profissional passa a ser uma eterna busca por mais e mais. O supervisor quer virar coordenador, depois gerente, depois superintendente, depois diretor… sempre buscando um salário e status maior. Há quem nem se importe com o cargo, somente com ganhar mais e mais para sustentar uma aparência social ou acumular dinheiro por acumular, sem um objetivo específico, sempre sob o manto da desculpa de “conforto”. A pessoa com grana pra 10 apartamentos não tem mais conforto da com grana pra 4. Na parte pessoal, alguns desanimam rapidamente de um relacionamento estável, ora mantendo o mesmo para fins sociais (especialmente quando casado no civil e religioso e, mais ainda, quando já tem filhos), ora terminando relacionamentos e buscando incessantemente a outra metade da laranja, sem saber que a perseverança em renovar a parceria é o principal ingrediente pra evitar que sua atual metade da laranja fique azeda.


Aos 34 anos, faz pouco tempo, sinto que iniciei minha quarta vida. O plano profissional foi substituído pela independência financeira, esta nunca entendida como abundância de dinheiro, mas sempre como a satisfação com o que o já tem e um planejamento sólido – sujeito à revisões conforme o mundo gira – para perpetuar o patrimônio. A vida pessoal consiste em passar 24h com esposa e filha, aproveitando os momentos bons, aprendendo com os ruins e buscando qualidade de tempo com os demais familiares (muitos deles pouco lembrados pelas metas das vidas anteriores) para que se tenha o que realmente importa. Ainda, aprender um novo pensamento filosófico ou abordagem de saúde soa infinitamente mais útil que saber a última novidade da minha área profissional (fundamental para quem se encontra na vida anterior).


Olhando em retrospectiva, cada vida parece ter sido, de fato, uma vida passada, um aprendizado que dificilmente terá retorno sob qualquer aspecto. Há um vídeo do Mario Cortella (desculpe, não salvei o link) que ele expõe que muitos casamentos terminam porque um dos cônjuges afirma ao outro: “você não é mais o mesmo”. É muito interessante quando finalmente parei para perceber que nem eu nem você somos mais os mesmos que fomos anos atrás; já não somos os mesmos que fomos ontem, mesmo que em uma micromedida, agindo o fator tempo como os juros compostos modificando nossa essência.


O mais curioso da minha vida atual é que pareço habitar num mundo paralelo a quase todos os conhecidos, ainda vivendo majoritariamente na minha vida anterior. O paralelismo também é digno perceber junto àqueles que tem vidas absolutamente distintas por razões circunstanciais de localização e renda (díspares para muito menos ou muito mais). O fator principal e que muito me orgulho, posto que fruto da minha construção ao longo dos anos, é que hoje faço praticamente tudo que quero e aprendi a não querer o que seria impossível ou de grande sacrifício.


Que a vida atual seja perene e que eu tenha sabedoria para me enquadrar nas próximas que virão.


E você, parou para contabilizar quantas vidas já viveu, em qual se encontra hoje e qual deverá ser a próxima?


Abraço